O
sofrimento veio como um tsunami. Eu olhava para meu amor e não via futuro algum
para nós. Mas nunca houvera futuro mesmo. Eu era uma farsa, uma total fraude da
cabeça aos pés. Lógico que ele me convidou para a grande festa e eu aceitei,
fingindo grande empolgação. Aquilo tudo fazia parte do meu plano.
Rafaela
percebeu uma súbita mudança no meu estado de humor e possivelmente ficou muito
confusa. Nando, que estava em São Paulo, me ligava todos os dias. Se não era o
Nando quem me perturbava, devia pensar minha irmã, qual era o motivo para meu
estado sombrio?
Uma
semana antes da festa Nando e eu conversávamos dentro do carro, voltando para
casa depois de um passeio no parque. Era domingo. Fazia frio. Eu sentia minha
alma mais gelada ainda. Já era para eu ter rompido com ele, mas meu coração
sangrava. Era difícil. Doloroso. Qual sentido teriam as coisas depois que Nando
não estivesse mais ao meu lado?
Ele
comentou algo sobre a festa, da decoração do clube, música, dança... Então,
reunindo toda a minha pouca coragem, eu declarei, com a voz seca e fria.
−
Nando, eu não vou.
Era
tudo o que precisava para gerar uma crise. Eu me negar novamente a encontrar
com a sua família era como ter acendido a fogueira para causar um enorme
incêndio. Assim que passou a surpresa, os olhos dele soltavam faíscas. Tive
ímpetos de me encolher, porém me mantive firme.
−
Por quê?
−
Não acho que eu queira conhecê-los.
De
novo o tom da minha voz soou horrível até mesmo para meus próprios ouvidos. Não
era eu quem falava aquilo. Algo devia ter me incorporado. Fiz força para não
chorar. Firmei a voz e prossegui:
−
Sua família não vai me aceitar e acho que terei problemas em relação a isto.
−
Não é este o motivo – ele sibilou – Conte outra.
Engoli
em seco.
−
Eu não quero ir. Não quero conhecer seus pais.
Nando
ficou em silêncio, com os lábios crispados. Furioso.
−
Você tem certeza do que está dizendo?
−
Claro que sim.
Eu
mal terminei de responder e ele deu uma freada brusca, parando junto à calçada.
Para meu espanto Nando me olhou e esbravejando exigiu:
−
Saia do meu carro.
Permaneci
olhando para ele, mal disfarçando meu choque.
−
Você sabe o quanto esta festa é importante para nossa família e tudo o que isto
pode simbolizar. Se você não quer participar, significa que você não quer fazer
parte dela. Então desapareça daqui.
Fiquei
zonza, mas consegui atinar de abrir a porta e sair. O carro partiu em seguida
em alta velocidade. Comecei a andar pela calçada, atordoada, em linha reta,
como se estivesse catatônica. Eu estava um pouco longe de casa e isto não fazia
a menor diferença para mim. Era melhor que eu caminhasse para esfriar a cabeça,
chorar tudo o que era para ser expiado antes de chegar em casa e dar de cara
com a Rafa. Mesmo tendo provocado a ira do meu namorado, agora ex, eu ainda
tinha esperança de que ele voltasse pedindo desculpas, zerando tudo outra vez.
Só que o carro dele não apareceu ao meu lado e à medida que eu me aproximava de
casa, passei a desejar que então Nando estivesse na frente do meu prédio, me
esperando. Claro que ele não estava lá quando finalmente cheguei. Ele não
estaria em lugar nenhum, eu disse para mim mesma. Muito menos na minha vida.
Abri
a porta do apartamento e encontrei Guto e a Rafa assistindo a um DVD. Minha
cara de enterro devia estar pior do que eu imaginava, tendo em vista a
expressão de assombro dos dois. Refugiei-me no meu quarto, fechei as cortinas e
sentei na cama. Não conseguia pensar em mais nada a não ser nele. Se Nando
voltasse para mim, eu teria que contar a verdade. E desta forma também não
obteria seu perdão. Pela primeira vez me arrependi de um dia tê-lo abordado
naquele maldito reveillon. Por que eu não tinha ficado quieta no meu canto? Por
que não investi em um relacionamento menos problemático? Por quê? Por quê? Por
quê?
Minha
irmã abriu a porta do meu quarto. Cuidadosa, ela perguntou:
−
Dá pra eu acender a luz?
Murmurei
que sim e Rafa entrou, fechando a porta. Ela acendeu a luz do abajur e ficamos
um tempo nos encarando. Criei coragem finalmente e revelei:
−
Há alguns dias atrás nosso primo me contou a versão deles a respeito daquela
história do papai.
Curiosa,
mas pressentindo que viria chumbo grosso, Rafa indagou lentamente:
−
E bateu com a nossa?
−
Rafaela, você sabia que nosso pai tentou matar o pai do Nando?
Minha
irmã recuou como se houvesse levado um golpe. Pálida, muito pálida, repetiu:
−
Papai tentou matar nosso tio… Não pode ser verdade!
−
Mas eu acho que é.
Sem
poder mais ficar em pé, ela sentou ao meu lado e cobriu o rosto com as mãos arrasada.
−
Mamãe não me contou esta parte.
−
Para nos poupar, certamente.
−
Como foi?
Contei
resumidamente tudo o que Nando me narrara e a cada palavra, Rafaela balançava a
cabeça como se não acreditasse em nada.
−
Será que é por isto que agora papai se dedica tanto às causas sociais? –
perguntou minha irmã em tom de deboche.
−
Tenho certeza que sim.
Fiz
uma pausa e prossegui:
−
Sabe como eles nos chamam?
−
Como?
−
Lado podre da família.
−
Foi por isto que vocês brigaram? Você e o Nando?
−
Eu provoquei uma situação de rompimento – esclareci, com o coração murcho –
Depois do que eu soube e do que ele pensa sobre nós, realmente caiu a ficha que
é impossível ficarmos juntos. Os pais dele vão comemorar aniversário de
casamento daqui a uma semana. Será um evento grande. Imagine eu dando de cara
com todas aquelas pessoas que me conheceram quando eu era uma menininha? E com
os nossos tios? Impossível. Alguém iria me reconhecer e a festa terminaria por
minha causa. O Nando odeia o lado de cá. Disse que poderia reconhecer papai em
um estádio lotado. Ah, e acertariam as contas, caso isso acontecesse.
−
Você é a cara do papai.
−
E o Nando nunca percebeu.
−
Bem, voltando ao assunto... O que você fez para romper o namoro?
−
Simplesmente disse que não iria à festa, não queria conhecer os pais dele.
Discutimos e ele fez com que eu descesse do carro. Vim a pé.
−
Puxa, mas que grosso!
−
Estou arrasada... Queria que meu celular tocasse e ele dissesse que está tudo
bem, que sempre ficará tudo bem, com segredos ou sem segredos.
−
Melhor assim, Paulinha. Pense na confusão que você evitou.
−
Ele é o homem da minha vida – resmunguei desolada.
−
Até você conhecer outro.
−
Eu não quero conhecer ninguém, Rafa. Minha vida perdeu a graça agora. Por quem
eu vou continuar tendo motivos para levantar de manhã?
−
Pelo amor de Deus, Paulinha! – berrou Rafaela – Que dependência desse homem!
Você não tem vida própria?
−
Não.
−
Em qual século você vive?
−
Não sei. A única coisa que tenho conhecimento é que amo o Nando.
−
Quem sabe você adquire as rédeas da sua vida? Você mesma contou que sempre foi
apaixonada pelo nosso primo, que fuçou a vida dele no Facebook até um dia
provocar o encontro. Ou seja, sua vida é um satélite que gravita em volta do
Fernando. Que tal partir para outros rumos? Pode ser interessante.
−
Não sabia que tenho uma irmã formada em psicologia.
−
Nem preciso ser formada em porra nenhuma. Seu caso é ridiculamente fácil e pode
ser tratado por qualquer leigo.
Rafaela
me deu um beijo na testa e saiu do meu quarto. Era impressionante. O fato de eu
romper com o Nando foi o suficiente para minha irmã se reaproximar de mim.
Deitei na cama sentindo um vazio horrível por dentro. Nada mais fazia sentido
agora.