Pisquei
umas duas vezes para que meus olhos enxergassem direito. Havia um sósia do
Nando ao lado dos meus amigos. Aquele cara, com barba por fazer e que vestia
uma camiseta igual a que eu tinha dado em um passado recente para meu
ex-namorado, olhava-me com uma expressão de assombro e de ceticismo. Jesus, não
era possível. Não era o Nando em pessoa que havia ido até lá terminar a surra
interrompida. Mas era impossível que aqueles olhos não fossem os dele, ninguém
mais me olharia daquela forma no mundo. Só ele.
Tudo isto se passou em três
segundos.
Então aconteceu. Minha perturbação
foi tão imensa que perdi o equilíbrio. Eu não saltei da ponte. Eu despenquei
dela. Quando me dei conta já estava no espaço vazio, o rio aproximando-se
perigosamente de mim. Pensei que iria morrer, não sentia a corda elástica ao
redor do meu corpo. Caí berrando o nome do Nando, sacudindo pernas e braços,
finalmente voltando ao mundo real. Enquanto eu balançava de um lado para o
outro, eu me perguntava se o homem que tinha visto não seria uma alucinação de
minha mente desvairada. Afinal, como que o Nando poderia ter me encontrado em
um lugar tão distante e escondido?
Victor. Só podia ter sido ele. Mas
naquele momento eu não conseguia fazer maiores considerações sobre o caso. Meu
corpo balançava sem controle, indo de um lado para o outro. Sei que subi e
desci algumas vezes, uma sensação de caos total. Eu via o rio passando lá
embaixo, pensava no Nando lá em cima. O povo todo devia estar rindo de mim, dos
meus berros, do show gratuito que eu estava patrocinando. Eu torci para que não
houvesse ninguém filmando aquelas cenas grotescas. Certamente eu seria campeã
de audiência no You Tube.
Sem sombra de dúvidas, um enorme
vexame.
Depois de uma eternidade, senti que
estava sendo içada novamente para o alto da ponte. E agora? Eu teria que
enfrentar o Nando e toda a sua ira e não estava preparada para o embate. E
jamais estaria. Além disso, minhas pernas e meus braços estavam sem força
nenhuma, o que significava que eu teria que ser carregada até o jipe. Sem falar
no enjôo... se eu abrisse a boca era capaz de vomitar.
Por que não me deixavam ficar
balançando de um lado para o outro pelo resto da minha vida?
Aos poucos fui chegando lá em cima
com os olhos semicerrados. Obviamente causei sensação. As pessoas se
aglomeravam por ali, certamente achando que eu estava à beira da morte. Quando
me dei conta, estava deitada no chão, com vários pés a minha volta. Respirei
fundo para não vomitar. Alguém se agachou ao meu lado e tocou no meu rosto.
−
Ela está bem. Foi só o susto.
Nando. Abri os olhos devagarzinho e
me deparei com os dele. Ficamos nos encarando por alguns segundos e ele
acariciou suavemente meus cabelos. Controlei o choro, mas meus olhos se
encheram de lágrimas. Bem, pensei, acho que me matar aqui ele não vai.
−
Tem algum posto médico por perto?
Aquela voz firme que eu tanto amava
ressoou nos meus ouvidos como se fosse música. Meu coração acelerou ainda mais.
Lentamente, comecei a sentir meus braços e pernas, o que não significava que eu
podia caminhar. Não podia. Ver o Nando ali, ao meu lado, era mais do que eu
podia suportar em pé. Ouvi alguém comentar que sim, havia um posto médico
improvisado e imediatamente eu saí do chão direto para os braços do Nando.
Enterrei meu rosto no peito dele, enquanto atravessávamos aquele círculo de
gente que havia se formado em nossa volta. A voz de Victor se fez ouvir:
−
Não se preocupe, Fernando. Pauline só está assim porque não contamos para ela
que você estava chegando.
Que complô meus amigos me armaram.
De qualquer forma, estar sendo levada para o posto médico nos braços do Nando
era o paraíso na terra. Eu mantinha meus olhos fechados um pouco pelo enjôo e
principalmente porque eu não tinha coragem de encarar meu ex (?) namorado. O
que ele estaria pensando daquilo tudo? Depois de tanto tempo sem me ver, Nando
me encontra na beira de uma ponte, pronta para o salto. Será que ele pensava
que eu estava procurando a morte? E será que não era isto que eu desejava e não
podia admitir?
Deitaram-me em uma maca dentro de um
espaço arranjado para servir de posto médico. Eu mal podia olhar para meu amor,
enquanto a médica verificava minha pressão, minha temperatura e as batidas do
meu coração. Tudo isso não levou mais que dez minutos. Durante todo esse tempo
permaneci deitada, respirando fundo, ansiosa. As mãos dele ora acariciavam meu
rosto, ora meus cabelos. Em algum momento, Nando segurou mais forte minhas mãos
como se quisesse me tranqüilizar. Eu sei que deveria estar tranqüila, feliz e
em paz. Mas eu não sabia o que viria dali para frente. Fernando tinha vindo me
buscar? Ou queria saber apenas se eu estava viva para dar a notícia para meus
pais?
De repente a médica disse:
−
Ela só está um pouco nervosa. É bom que fique alguns minutos de repouso até se
sentir em condições de ficar em pé novamente.
E dizendo isto a mulher saiu. Só restamos eu e o Nando dentro do lugar, nós dois à meia luz. Fechei os olhos e fiquei em silêncio, tentando procurar algo consistente para dizer a ele. Mas o nó da minha garganta impedia a articulação de qualquer frase.
−
Abra os olhos, Pauline. E olhe para mim.
A voz dele soou horrível. Fui
abrindo os olhos bem lentamente, com medo do que eu poderia encontrar. De fato,
Nando me encarava como se fosse terminar a surra de cinco meses atrás.
−
O que você fez?
Respirei fundo, mas não desviei os
olhos dele. Minha vontade de chorar aumentou. Minha esperança de que o Nando
tivesse me perdoado se esvaiu quando escutei o seu tom de voz frio. Engoli em
seco e tentei me sentar. Fiquei tonta, mas acomodei-me em alguns travesseiros
até que o mundo parasse de girar a minha volta. Novamente ele perguntou com
seus olhos frios e sem desviar por um segundo dos meus:
−
Por que você fez isto?
Puxei minha voz lá do fundo e
respondi balbuciando:
−
Eu… eu resolvi saltar… porque…
−
Por que você fugiu?
Ah, então era isto. O Nando queria
saber por que eu tinha desaparecido. Porém, será que era tão difícil saber a
resposta?
−
Pauline, pelo amor de Deus – murmurou ele, passando as mãos nos cabelos,
mostrando uma angústia que eu ainda não conhecia – Por que você fugiu?
Meus olhos se encheram de lágrimas
e, para minha surpresa, os dele também.
−
Você não tem idéia do que causou. – ele confessou, com o rosto ligeiramente
contorcido, o que me cortou o coração - Nem por uma vez você foi capaz de
pensar na dor dos seus pais, da sua irmã? – Nando suspirou e completou – Na minha
dor?
−
Nando, eu… - tentei falar, mas fui interrompida por um gesto.
−
Nada justifica isto – e ele aumentou o tom da sua voz – Nada justifica o que
você fez. Meu Deus, por meses a fio pensamos que você havia morrido. Paguei
detetives, mas nenhum foi capaz de encontrar seu rastro. Ninguém nunca viu
você! Houve uma noite em que ligaram para meu celular...
Ele fez uma pausa e me encarou com
os olhos marejados de lágrimas. As minhas próprias lágrimas já banhavam meu
rosto e eu não fazia a menor questão de enxugá-las. Nando prosseguiu:
−
Era a polícia dizendo que haviam encontrado um corpo com as suas características
na beira da praia. Na mesma praia em que nos conhecemos.
Levei um choque. Imaginei o terror
que ele havia passado. Nando e toda minha família.
−
Saí desesperado pela estrada, dirigindo feito um louco. Não deixei que seu pai
viesse conosco porque eu tinha medo do que ele pudesse encontrar.
−
Você foi… sozinho? – eu até tinha medo de saber a resposta, enquanto uma crise
de culpa se jogava em cima do meu colo.
−
Meus irmãos foram comigo, pois ficaram com medo que eu me matasse na estrada –
Nando fez uma pausa, como se reviver aquele drama fosse demais para ele – Mas
quem estava lá era uma pobre infeliz que tinha o cabelo vermelho como o seu,
mas possivelmente tinha tomado um porre e entrado no mar. E desde então,
Pauline, cada vez que toca meu celular, eu atendo temendo que seja alguém me
dizendo que você está morta, que um corpo foi encontrado e que tem semelhança
com o seu… Imagine o que seus pais estão sofrendo... Rafaela não sabe mais o
que fazer, passa os dias na janela esperando que você dobre a esquina. Não foi
justo o que você fez conosco, Pauline. Não foi.
Era quase uma acusação. Então eu
também resolvi falar.
−
Eu fugi… - comecei, sentindo o choro subir garganta acima – Eu fiz o que fiz
porque não pude suportar o fato de ter levado uma surra – podendo até mesmo ter
sido morta – pelo único homem que amei.
Falei de uma vez só, antes que a voz
e a coragem me faltassem. Nando me olhou surpreso e iria falar alguma coisa,
mas eu não deixei.
−
Me deixe terminar. Nando – respirei fundo – por você eu daria minha vida. Você
sempre soube disto, não soube? Desde que me conheço por gente, eu fui
apaixonada por você. Quando nossa família se separou, eu não te esqueci.
Pensava em você todos os dias. Por vezes eu me perguntava se era obsessão ou
paixão. E quando finalmente eu descobri você no Facebook, meu mundo se abriu.
Ele nunca havia escutado aquela
história, o meu lado da história. Com total atenção do Nando, eu prossegui,
tentando de forma resumida, mostrar o tamanho do meu amor por ele.
−
Eu segui você pelas areias da praia, naquele reveillon. Só fui passar o final
de ano lá porque eu soube pelo Facebook onde você estaria. Sei também que você
só ficou comigo porque estava de porre. Mas não me importei, Nando, porque eu
estava vivendo um sonho incrível. E se eu lhe contasse quem eu era, você me
daria um pé na bunda. E – confessei, sem até então ter me dado conta disso –
não imaginava que você pudesse gostar de mim um dia.
Parei para enxugar minhas lágrimas
enquanto ele, em silêncio, esperava o resto da minha narrativa.
−
À medida que nós nos envolvíamos, ficava cada vez mais difícil eu te contar
tudo. Mas eu tentei, Nando. Eu juro que tentei.
−
Você devia ter me contado – ele disse, atormentado – Isto teria evitado… muitas
coisas.
Ficamos em silêncio novamente. Um
curto silêncio.
−
Como você acha que eu me senti depois de ter tomado aquela surra, Fernando?
−
E como você acha que me senti, Pauline? Venho vivendo no inferno desde aquela
manhã horrível.
−
Sabe por que eu fugi, Nando? Não suportei a idéia de ter levado uma surra de
você. Você teria me matado se meu primo e meu tio não o tivessem afastado de
mim. Doía no meu peito saber que você me odiava. Para mim é impossível conviver
com isto.
−
Conviver com o quê?
−
Com o fato de você me odiar – respondi quase aos prantos.
−
Nunca odiei você.
−
Não era o que seus olhos diziam naquele dia – eu contestei, com o coração aos
pulos.
−
Eu me senti traído. Não encontrei outra maneira para reagir.
E segurando minhas mãos, Nando olhou bem nos meus olhos e disse:
−
Desculpe, Pauline. Por favor, diga que me perdoa.
Nem em meus sonhos eu esperei ouvir aquele pedido de desculpas. Era demais para mim. Comecei a chorar, desta vez pra valer. Me joguei nos seus braços, sentindo o cheiro dele, a pele, o calor. Meu Deus, que saudade. Achei que nunca mais veria o Nando novamente e nem escutaria o som da sua voz, a não ser nos meus sonhos e pesadelos. Também senti as lágrimas dele escorrerem pelo meu rosto quando ele pediu, suavemente:
−
Volte comigo, Pauline. Venha comigo para casa. Diga que vai ficar comigo para
sempre...
Engoli um soluço e respondi, tentando descontrair o ambiente carregado de emoção:
−
Só se você jurar que vai casar comigo.
−
Eu juro, se você jurar a mesma coisa.
−
Eu juro.
−
Então eu juro também.
Quando dei por mim, estávamos envolvidos em um longo beijo. Na verdade, acho que nunca trocamos um beijo tão ardente em nossas vidas. Meu cansaço, enjôo e tontura foram esquecidos nos lábios dele. Eu estava tão emocionada que interrompi o beijo para recomeçar a chorar.
−
Vamos esquecer isto tudo – murmurou ele no meu ouvido – e começar nossa vida
outra vez agora… agora que não existem mais segredos entre nós.
−
Sabe como me sinto? – perguntei, segurando o seu rosto bem junto ao meu –
Parece que o peso do mundo inteiro foi tirado das minhas costas. Eu… odiava ter
que esconder tudo de você, Nando. Naquela vez, lá na praia… lembra? Na
Páscoa... – Tive que engolir o choro para poder continuar – Eu tentei contar
tudo para você, juro que tentei. Mas meu medo de que você me odiasse foi tão
grande que não consegui confessar nada.
−
Eu sempre soube que você me escondia alguma coisa. Por vezes achava que você
deveria ter algum namorado secreto lá onde seus pais moram... Cheguei a
imaginar mesmo que fosse um filho que você escondesse de mim. Perdi as contas
de quantas vezes eu ficava observando você dormir – revelou ele, para minha
surpresa – e me impressionava com sua expressão de tensão. E dor.
−
De dor?
−
Você sofria até mesmo quando dormia, Pauline. E me angustiava saber que você
não confiava o bastante em mim para me contar o que lhe fazia sofrer tanto.
−
Tudo o que eu fiz... fiz por amor – sussurrei no ouvido dele – Nada mais que
isto.
−
Então volte comigo. Eu não atravessei o Brasil inteiro para deixar você aqui.
Antes que eu respondesse, a porta foi aberta bruscamente. A médica nos olhou e franziu a testa ao nos ver tão juntos.
−
Bem, pelo visto a mocinha já está recuperada. Será que vocês podem nos dar
licença? Tem outro passando mal aqui.
Ajudada por Nando e ainda com as pernas fracas, saí amparada por ele, sentindo-me tão leve que se me dessem asas sairia voando. Não lembrava da última vez que havia me sentido tão feliz. Então, curiosa, perguntei:
−
Foi realmente o Victor que trouxe você para cá, não foi?
Fernando deu uma risada e me puxou
mais perto dele.
-
O telefone do seu amigo nunca foi configurado para ser confidencial. Daquela
vez que você me ligou, pelo prefixo eu percebi que era do Nordeste. Evidente
que logo desconfiei que era você. Deixei passar um tempo e telefonei de volta.
Victor atendeu a ligação e contou quem ele era, onde você estava e relatou tudo
o que se passava. Eu fiquei louco. Acertei algumas pendências que eram
urgentes, comprei uma passagem de avião e me mandei para cá. Quando cheguei
hoje, o Victor me ligou que vocês estavam vindo para a ponte e que você
pretendia se matar saltando de bunggie jump. Eu vim de táxi até aqui e cheguei
bem na hora que os instrutores falavam com você, segundos antes do salto. Até
agora eu não acredito que você tenha feito aquilo. O que você pretendia,
Pauline? Se matar?
−
Eu… eu não sei – respondi, ligeiramente envergonhada – Eu só não queria pensar
em você. Achei sua voz tão fria no telefone da última vez que liguei... A
impressão que tive foi que você me odiava ainda e eu não pude suportar. A dor
veio inteira de novo e eu precisava urgentemente me preocupar com alguma coisa
que não fosse você – Senti as lágrimas virem com força aos meus olhos – A única
coisa que veio a minha mente foi saltar de uma ponte.
−
Bem, me parece que você caiu dela – Nando retrucou rindo.
−
Que vergonha... mas pelo menos você está aqui. Nada mais importa agora.
−
Nada mais – repetiu ele, beijando-me suavemente.
Victor e Fred nos esperavam mais a frente, sorrindo e se cutucando. Quando chegamos mais perto, eles se aproximaram e nos envolveram em um longo abraço. Os dois estavam visivelmente emocionados.
−
E você não queria telefonar para ele! – Victor exclamou, fazendo que acertava
um tapa na minha testa.
−
E você trapaceou! – acusei rindo.
−
Quisera Deus que todos os trapaceiros agissem pelo bem como você fez, Victor –
falou Nando, para em seguida agradecer – Vou ficar lhe devendo esta, cara.
−
Só de ver Pauline sorrindo, isto paga tudo – respondeu ele, olhando para mim –
Na verdade, acho que é a primeira vez que vejo você sorrir desde que aportou
aqui.
−
Deve ser porque estou feliz – eu disse, sentindo que meu sorriso cada vez se
alargava mais.
Começamos a nos dirigir lentamente para o jipe. Frederico então comentou:
-
Acho que perdemos nossa amiga, Victor. Fernando vai levá-la de nós.
Pela primeira vez me dei conta daquilo.
−
Nós iremos voltar outras vezes, não é, Nando? – perguntei ligeiramente ansiosa.
−
Na nossa lua de mel, seguramente.
Victor fez uma expressão sonhadora, olhou para o céu e murmurou com a voz melodiosa:
−
E eles viveram felizes para sempre... Mas eu ajudei a escrever o final desta
linda história de amor.
E então Nando, abraçando-me mais fortemente ainda, profetizou:
−
Não é o final, Victor. É apenas o começo de tudo.